domingo, 22 de fevereiro de 2009

Flores de Pitigliano











Pitigliano é um piccolo paese a poucos quilômetros do mar Tirreno, encarrapitado num rochedo desde o tempo dos etruscos. Lá do alto, no verão, principalmente ao amanhecer, quando sopra uma brisa fresca, é bonito de se olhar. Avista-se a paisagem emocionante da maremma Toscana, com seus ciprestes recortando o horizonte sem fim e há sempre alguém atravessando os campos cultivados, de volta a casa, esgoelando uma canção qualquer.
Pitigliano era apenas mais um povoado no caminho daqueles artistas, num certo verão do século dezenove. Chegaram para ficar duas, três, quantas semanas a pequena cidade pudesse sustentá-los. Eram cantores, intérpretes de ópera, grandes e vaidosos narizes empoados. As roupas tinham remendos de verdade, o vinho nem sempre era farto, mas eles não escondiam seu orgulho e a alegria de viver da arte.
Todo grupo tem uma estrela e esta trupe tinha Rosa. A ela estavam reservadas as melhores árias, a posição central no palco, os figurinos menos gastos. Rosa era uma mulher altiva, bonita e naturalmente sedutora. Qualidades que, quando em cena, atraiam olhares fixos masculinos e respectivos cutucões de esposas enciumadas.
E foi por causa de Rosa, com certeza, que o pequeno Teatro Salvini na praça principal de Pitigliano se encheu no sábado de estréia. Ali estava o prefeito, o padre, os comerciantes ricos da cidade. Rosa já conhecia aquelas caras comuns, de tantos teatros iguais, de tantas cidades ao longo da estrada. Mas alguém, lá na última fila, chamou-lhe a atenção. Um homem alto e bonito, de olhos azuis - porém um homem rude, com certeza. Seu terno mal cortado, o nariz imenso e a gravata torta assim o revelavam.
Que coisa engraçada! O homem carregava um buquê de flores do campo, um amarrado colorido e despojado como ele próprio. Para surpresa de Rosa, ao final do espetáculo, o homem furou a fila de cumprimentos, aproximou-se sem dizer nada, entregou a ela o mazzolino – e desapareceu.
No domingo, lá estava ele de novo, na última fila, esperando os aplausos finais para entregar mais flores àquela mulher que o havia fascinado desde que a viu chegar a Pitigliano, na carroça mambembe dos artistas.
E o mesmo ritual se repetiu durante todos os dias da temporada. Religiosamente, sempre em silêncio e com um sorriso discreto, Paolo levava suas flores de Pitigliano para Rosa. Até que, na hora de partir, ela descobriu que não poderia mais viver sem aquele carinho diário e sem os olhos azuis que lhe faziam estremecer. Abandonou o grupo, desprezou conselhos, enfrentou a ira do empresário e ficou com Paolo em Pitigliano, numa casinha feliz. Só saíram de lá, anos depois, com os filhos Lorenzo, Giuseppe, Adelaide e Matilde, quando o pão desapareceu da mesa e um país distante chamado Brasil chegou-lhes como num sonho. Mas essa já é outra história.
Retornei a Pitigliano algumas vezes e lá sempre revivo a bela história de amor de meus antepassados, Paolo Fabbrini e Rosa Amicangeli.
Recentemente, fizemos outra visita ao Teatro Salvini, hoje totalmente restaurado. Ali, minha filha Carolina, também cantora e artista, subiu ao velho palco para prestar seu tributo a Rosa, mais de um século depois, cantarolando um trecho de ópera imaginário. O momento raro foi devidamente fotografado com o talento e a sensibilidade de sua irmã Laura – as duas, cidadãs ítalo-brasileiras, apaixonadas pela magia da Toscana. Afinal, foi nesta terra que nasceram as flores que um homem apaixonado entregou à sua mulher, num gesto que nos deu a vida. Como não se emocionar com nossas raízes italianas? (Publicado originalmente na revista "Comunità Italiana", julho/2008)

2 comentários:

  1. Imagino sua emoção, Fernando!
    Consegui formatar uma imagem cinematográfica em minha mente, lendo seu texto.

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  2. Tão encantadora é essa história que faz silenciar a voz. E a alma, não tendo outra alternativa, sorri.

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