domingo, 22 de fevereiro de 2009

O Natal de qualquer dia


(Publicado originalmente no jornal "Lo Stivale", editado pelo COMITES - Comitato degli Italiani All'Estero/BH, em Dez/08)

Responda-me com sinceridade: quantas pessoas chegam ao final do ano com a alma zerada, o coração em paz, os afetos em dia e as mágoas sanadas? Muito poucas. Porque, infelizmente, nossos sonhos, alegrias e dores não obedecem ao calendário gregoriano. E o mais freqüente, claro, é atrapalharmos a esperada harmonia do coral natalino com acordes humanos, bem desafinados para a festividade. A nossa humilde realidade, nossos problemas, o nosso dia a dia comum contrastam com a ilusão das propagandas brilhantes desses dezembros, trombam de frente com a felicidade cosmética dos comerciais da TV. Por isto, confesso que há muito tempo venho buscando o meu Natal fora do calendário, além das vitrines enfeitadas, quando minha alma é tocada pelo Grande Sentimento da Fraternidade - esta entidade de aparições raras, porém inesquecíveis.
Aconteceu uma vez comigo. Estava em uma igreja, em outro país. Havia uma missa acontecendo e a tal Catedral, famosa pelos seus vitrais, estava repleta de turistas, como nós. Entramos, sem notar, naquele ponto da missa quando as pessoas ficam de mãos dadas para rezar o Pai-Nosso. Obedecendo ao ritual, um pouco desajeitados pela intimidade súbita, nós - ovelhas desgarradas e pecadoras - seguramos, meio sem jeito, as mãos vizinhas e começamos a rezar.
Foi aí que a magia aconteceu. A oração que subia da multidão não era rezada apenas no nosso português-brasileiro, mas também em vários outros idiomas – italiano, japonês, inglês, francês e tantos outros que não consegui identificar. Estávamos ali, turistas de toda parte, ignorantes como os pastores que seguiram a Estrela, reunidos por acaso para pedir a paz em muitas línguas ao nosso imenso e generoso Pai de todas as raças.
Tenho certeza de que não fui o único a sentir o nó na garganta, na medida em que nossas vozes heterogêneas ressoavam na Catedral. Quando terminou a oração, soltamos as mãos, sorrimos para nós mesmos e saímos cada qual para seu destino, fingindo que olhávamos interessados os detalhes renascentistas do teto.
Lá fora não havia neve, nem sombra do Papai Noel. A única música vinha de uma loja de discos na praça em frente, tocando um reggae. O sol ainda era quente para o outono europeu, é certo. Mas eu tinha certeza de que era Natal.

Nunca Mais


(Publicado originalmente na edição 2007 do Livro de Graça na Praça - " A Primeira Vez")

A grande mesa estava montada na Excelsa Nuvem das Reuniões, um espaço nobre do Paraíso. As cadeiras já tinham sido ocupadas muito antes que Ele chegasse. Ali se acomodaram, na rigorosa ordem hierárquica celestial, os Anjos, os Arcanjos, os Principados, as Virtudes, as Potências, as Dominações, os Tronos, os Querubins e os Serafins – estes últimos tão íntimos do Senhor que eram autorizados a freqüentar o Paraíso até nos domingos – dia em que Ele descansava e não queria saber de visitas.
Falavam baixo, cochichavam, trocavam cumprimentos discretos, à espera d’Ele. Um suave odor de lavanda perfumava a sala cada vez que algum anjo agitava as asas, flutuando suavemente a poucos centímetros do piso.
O Senhor chegou com o atraso habitual de vinte minutos. Afinal, todos sabiam que Deus tardava, mas não faltava. Parecia mais velho. O triângulo dourado sobre a cabeça irradiava uma luz poderosa cujos raios se espalhavam pelo ambiente. Os anjos se inclinaram, respeitosamente, cobrindo os olhos.
- Já entendi, vou desligar a luz alta – disse o Senhor, bem-humorado, enquanto se ajeitava sobre o Supremo Trono, arrumando as longas vestes para que coubessem no assento.
O anjo-secretário que o acompanhava ainda carregava papéis para serem assinados - coisas de rotina do expediente diário, como os numerosos formulários ANM - Autorizações para Nascimentos e Mortes dos dias seguintes. Ansioso por se livrar da papelada e começar logo a reunião, o Senhor pegou a pena e rapidamente lançou sua rubrica sobre os documentos. Depois se recostou, limpou a garganta e correu os olhos pela grande mesa.
- Tudo pronto? Podemos começar?
- Sim, Senhor, seja louvado! – disse o Anjo do Marketing, sempre o primeiro a falar.
Deus contemplou-o com certa impaciência. Sei lá, havia alguma coisa que o incomodava profundamente naquele Anjo. Seriam aquelas asas diferentes, baseadas – segundo diziam - numa escultura italiana da Renascença? Ou seu sorriso permanente? Ou a mania de contar piadinhas sobre Lúcifer?
- Para facilitar, preparamos uma apresentação em Power-Point...
Deus remexeu-se na cadeira e resmungou. Detestava essas modernidades virtuais. Gostava, sim, da argila sólida e palpável com a qual tinha moldado Adão e Eva; admirava as águas do Mar Vermelho, poderosas, que ele havia aberto para Moisés passar; e, principalmente, apreciava material impresso, preto-no-branco, como a primeira bíblia de Gutenberg. Aquilo sim era um bom relatório. Que saudades das Tábuas da Lei, esculpidas em granito! Porém, eram novos tempos. Resignou-se, ligeiramente amuado. Mas aproveitou para soltar sua piada favorita:
- Então, façam-se as trevas!
Os anjos fingiram achar graça, mas a anedota era constantemente repetida por Ele, na hora de apagar a luz nas reuniões.
O bom-humor divino não iria durar muito – temiam os anjos – quando fossem projetados os resultados do Relatório Século XX – uma complexa e profunda análise dos últimos cem anos do planeta que Ele havia criado.
- Bem, temos boas notícias e outras más... – iniciou o Anjo dos Recursos Humanos, com um sorriso amarelo.
- Pois diga logo – devolveu-lhe o Senhor, alisando a divina barba.
- Realmente, a idéia de criar o Homem à vossa imagem e semelhança...
Um silêncio pesado tomou conta da sala. Os demais anjos tremeram. Aquilo era um tabu, um assunto no qual ninguém gostava de tocar, principalmente diante d’Ele. Não deu outra: o Senhor bateu a mão sobre a mesa, quase derrubando o projetor. O sangue subiu-lhe à sagrada face.
- Volto a lembrar-lhes que “esta história de ‘à minha imagem e semelhança’ não nasceu de minha onipotência, lembram-se?”.
Claro. Todos se recordavam daquele dia terrível. Era a véspera do lançamento do Homem, bem em cima da hora, e ainda não havia consenso no Paraíso. O Senhor, líder da ala conservadora, o queria divino, íntegro, um ser especial, educado, respeitoso, sobretudo temente a Deus. A outra facção, metida a progressista e liberal, o preferia mais humano, com defeitos, dúvidas, angústias e até liberdade para gostar de música funk. Acabaram vencendo. O Anjo do Marketing se propusera a cuidar da imagem da nova criação e, na última hora, tirara da pasta o slogan “à sua imagem e semelhança”, irritando Deus profundamente.
- Isso aí vai ser parecido comigo? – dissera Deus, com um sorriso irônico.
- Será importante na divulgação do conceito – respondera-lhe o Anjo do Marketing. - E pode ajudar na fixação do modelo...
Sim, um dia para ser esquecido. O stress corria solto. Sábado vinha chegando e Deus estava cansado. Não era para menos: havia passado os últimos dias criando, criando, criando. Montanhas. Vulcões. Desertos. Geleiras. O ajuste final das placas tectônicas, complicadíssimo. Os Andes, os Alpes, os Himalaias e a Grande Barreira de Corais. Planetas e satélites. Sistemas solares inteiros. Exausto, já cometia erros e confusões, motivados pela sobrecarga de trabalho, como o caso do ornitorrinco e o das plantas carnívoras. Derrotado e sem apoio na Assembléia, acabara aceitando o Homem como votara a maioria – incluindo a Santa Ignorância, que passava por ali, por acaso.
- Então, que assim seja! – dissera o Senhor. Sou voto vencido!
A apresentação em Power-Point prosseguiu, enquanto os Anjos fixavam seus olhares, em silêncio dramático. Na tela sucediam-se imagens aterradoras, intercaladas com números deprimentes. Guerras. Miséria. Destruição. Degradação ambiental. Injustiça. Abusos. Intolerância. A dramática face de uma criança faminta na Etiópia, seguida de outra de Paris Hilton, descendo de uma Ferrari em Monte Carlo e segurando uma latinha de energético. Homens matando outros homens em nome de Deus. Homens enriquecendo-se com o dinheiro de ignorantes, também em nome de Deus. Closes de motosserras na Amazônia, derrubando árvores seculares. O luxo grotesco das celebridades de revistas. Torneiras de ouro, na mansão do traficante. Crianças escravas, fabricando tênis para multinacionais. E mais: torcidas se matando num campo de futebol. Famílias inteiras, hipnotizadas diante da TV, assistindo ao Big Brother. Salões de beleza lotados de mulheres lendo revistas Caras. Políticos sorridentes, sob aplausos de seus familiares, defendendo que a corrupção que praticaram era uma coisa normal e perfeitamente aceitável no atual processo democrático,
A onisciência e a intuição divina não haviam se enganado. Como ele mais temia, ali estavam os resultados de algo que poderia ter saído muito melhor. Deus esperou pacientemente que a apresentação terminasse, girando nos dedos uma pena desprendida de alguma asa, quase distraído. Parecia que olhava para o Infinito. Aí, desligaram o projetor e a luz se fez. Então Ele falou, pausadamente:
- “De mil passará, a dois mil não chegará...” – Era a minha proposta inicial, lembram-se? Mas todos votaram contra...
- A verdade é que muita coisa esquisita aconteceu nos últimos anos – ponderou o Anjo da Tolerância, sempre condescendente e conciliador.
- Sem falar no aumento inexplicável de seitas e religiões que faturam tudo, utilizando o Vosso Santo Nome, e nem recolhem os direitos de merchandising!
- De nossa parte, fazemos o possível e o impossível. Mas não está sendo fácil – disse lá do fundo, da última cadeira, o representante dos Anjos da Guarda, com a voz embargada.
Deus concordou, balançando a cabeça gravemente. Tinha um carinho especial pelos Anjos da Guarda, trabalhadores, humildes e dedicados. Sempre atarefados, quase nunca tinham tempo para comparecer às reuniões. Claro, tudo estaria muito pior sem eles – seus anjos mais queridos e para os quais havia dedicado, secretamente, todo o seu amor e suas esperanças.
Quantos anos já se haviam passado? Há quanto tempo o Homem existia sobre a Terra? Deus não se lembrava mais. Calou-se e olhou para as estrelas que brilhavam no céu azul marinho.
A reunião terminara. Enquanto os Anjos ajuntavam papéis e se preparavam para ir embora, Ele fez seu próprio balanço, a consciência tranqüila. O seu mundo funcionara bem. As plantas absorveram gás carbônico e produziram oxigênio, como havia pensado. Os animais, na perfeita cadeia alimentar, devoraram-se uns aos outros - mas só quando sentiam fome, como Ele próprio havia ordenado. Nenhum bicho possuía duas casas e todos trabalhavam honestamente pelo alimento diário. A sombra da grande árvore permitia que a pequena semente germinasse, lá embaixo. O excremento das aves fecundava o solo. As chuvas caíam na hora certa, irrigando, nutrindo o chão. As quatro estações mostravam que tudo estava em constante movimento, convidando ao desprendimento e à adaptabilidade. Havia trocas, permutas, parcerias, ordem – enfim, havia harmonia no seu mundo original. Tudo funcionara muito bem - até a chegada do predador.
Os Querubins perceberam que Deus estava triste. Tentaram consolá-lo:
- Deixa estar, Senhor. Não vos culpeis pelo erro. Afinal, foi a primeira vez que criastes o Homem, ora!
Deus virou-se de costas, enquanto sussurrava:
- Primeira e última! – e desapareceu na Eternidade.

Flores de Pitigliano











Pitigliano é um piccolo paese a poucos quilômetros do mar Tirreno, encarrapitado num rochedo desde o tempo dos etruscos. Lá do alto, no verão, principalmente ao amanhecer, quando sopra uma brisa fresca, é bonito de se olhar. Avista-se a paisagem emocionante da maremma Toscana, com seus ciprestes recortando o horizonte sem fim e há sempre alguém atravessando os campos cultivados, de volta a casa, esgoelando uma canção qualquer.
Pitigliano era apenas mais um povoado no caminho daqueles artistas, num certo verão do século dezenove. Chegaram para ficar duas, três, quantas semanas a pequena cidade pudesse sustentá-los. Eram cantores, intérpretes de ópera, grandes e vaidosos narizes empoados. As roupas tinham remendos de verdade, o vinho nem sempre era farto, mas eles não escondiam seu orgulho e a alegria de viver da arte.
Todo grupo tem uma estrela e esta trupe tinha Rosa. A ela estavam reservadas as melhores árias, a posição central no palco, os figurinos menos gastos. Rosa era uma mulher altiva, bonita e naturalmente sedutora. Qualidades que, quando em cena, atraiam olhares fixos masculinos e respectivos cutucões de esposas enciumadas.
E foi por causa de Rosa, com certeza, que o pequeno Teatro Salvini na praça principal de Pitigliano se encheu no sábado de estréia. Ali estava o prefeito, o padre, os comerciantes ricos da cidade. Rosa já conhecia aquelas caras comuns, de tantos teatros iguais, de tantas cidades ao longo da estrada. Mas alguém, lá na última fila, chamou-lhe a atenção. Um homem alto e bonito, de olhos azuis - porém um homem rude, com certeza. Seu terno mal cortado, o nariz imenso e a gravata torta assim o revelavam.
Que coisa engraçada! O homem carregava um buquê de flores do campo, um amarrado colorido e despojado como ele próprio. Para surpresa de Rosa, ao final do espetáculo, o homem furou a fila de cumprimentos, aproximou-se sem dizer nada, entregou a ela o mazzolino – e desapareceu.
No domingo, lá estava ele de novo, na última fila, esperando os aplausos finais para entregar mais flores àquela mulher que o havia fascinado desde que a viu chegar a Pitigliano, na carroça mambembe dos artistas.
E o mesmo ritual se repetiu durante todos os dias da temporada. Religiosamente, sempre em silêncio e com um sorriso discreto, Paolo levava suas flores de Pitigliano para Rosa. Até que, na hora de partir, ela descobriu que não poderia mais viver sem aquele carinho diário e sem os olhos azuis que lhe faziam estremecer. Abandonou o grupo, desprezou conselhos, enfrentou a ira do empresário e ficou com Paolo em Pitigliano, numa casinha feliz. Só saíram de lá, anos depois, com os filhos Lorenzo, Giuseppe, Adelaide e Matilde, quando o pão desapareceu da mesa e um país distante chamado Brasil chegou-lhes como num sonho. Mas essa já é outra história.
Retornei a Pitigliano algumas vezes e lá sempre revivo a bela história de amor de meus antepassados, Paolo Fabbrini e Rosa Amicangeli.
Recentemente, fizemos outra visita ao Teatro Salvini, hoje totalmente restaurado. Ali, minha filha Carolina, também cantora e artista, subiu ao velho palco para prestar seu tributo a Rosa, mais de um século depois, cantarolando um trecho de ópera imaginário. O momento raro foi devidamente fotografado com o talento e a sensibilidade de sua irmã Laura – as duas, cidadãs ítalo-brasileiras, apaixonadas pela magia da Toscana. Afinal, foi nesta terra que nasceram as flores que um homem apaixonado entregou à sua mulher, num gesto que nos deu a vida. Como não se emocionar com nossas raízes italianas? (Publicado originalmente na revista "Comunità Italiana", julho/2008)